terça-feira, 1 de abril de 2008

Instituto Butantã: centro produtor de soros e vacinas [Entrevista]

Vamos inaugurar nossa Sala de entrevistas na Web sobre assuntos específicos respondidos por pessoas famosas de nossa área....

A entrevista foi feita pelo nosso querido Dr. Drauzio Varella em seu site http://drauziovarella.ig.com.br/ponto/raw1.asp ao atual diretor do Institiuto butantã: Isaias Raw.

Isaias Raw, um dos mais eminentes cientistas da área das ciências biológicas do Brasil, foi professor de Bioquímica na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, trabalhou no exterior no período em que esteve exilado depois da revolução de 1964 e hoje dirige o Instituto Butantã, um dos orgulhos da ciência nacional.

Instituto Butantã: centro produtor de soros e vacinas

DrauzioComo o Butantã se transformou num centro produtor de soros e vacinas?
I.Raw – O Instituto Butantã começou a funcionar logo depois que surgiu um problema de peste no porto de Santos, improvisando uma vacina e um soro e, mais tarde, começou a produzir soros contra picadas de cobra.
Em 1985, quando o governo brasileiro resolveu fiscalizar os produtos fornecidos pelo Instituto e por demais 17 instituições, verificou-se que nem os soros nem as vacinas funcionavam. Como o soro contra a picada de cobra tem de ser produzido com o veneno do animal que existe no país, o Ministério da Saúde decidiu investir recursos para refazer o parque de produção de soros e vacinas, especialmente o de soros, porque esses não podiam ser importados. A idéia do governo era que aumentando a produção o problema estaria resolvido. Entretanto, ele não se resumia em trocar uma panela de 300 litros por outra de 500 litros. Era preciso fazer bem feito e de acordo com os padrões internacionais.
O Butantã assumiu o projeto e conseguiu realizá-lo com sucesso a ponto de, neste início do século XXI, existir uma capacidade ociosa para a produção de soros feitos em cavalos (a toxina do tétano e o vírus da raiva são inoculados em cavalos que depois são sangrados para separar a imunoglobulina) em parte porque nosso soro dura mais tempo do que se imaginava e por isso a demanda, de certa forma, diminuiu. No entanto, o Butantã continua sendo o único lugar do mundo onde alguém picado por cobra encontra soro para tomar antes que tenha uma lesão grave e irreversível.

Drauzio Os soros hoje são absolutamente confiáveis?
I.Raw – Todos os soros e vacinas, antes de serem distribuídos, são testados pelo INCQS (Instituto Nacional de Controle de Qualidade Imunobiológica) no Rio de Janeiro. Quando importávamos o grosso das vacinas de difteria, tétano e coqueluche, foi chocante verificar que as vacinas importadas não passaram no teste de controle de qualidade e que as produzidas pelo Butantã passaram. Talvez, só nesse momento, o governo tenha começado a acreditar no trabalho ali desenvolvido.

Drauzio De onde vinham essas vacinas no passado?
I.Raw - A maioria vinha de firmas européias e uma delas até foi riscada da lista dos fornecedores da OMS (Organização Mundial de Saúde). Em relação à vacina de coqueluche, sempre houve um pequeno inconveniente: em duas mil crianças, uma apresenta um problema mais sério, mas sempre digo que a possibilidade de a criança ser atropelada na porta de um posto de saúde é maior do que a de ter um quadro de coqueluche grave provocado pela vacina.

Produção de vacinas

O Instituto Butantã, fundado em fevereiro de 1901 e conhecido no mundo inteiro pela produção do soro antiofídico, ao longo dos tempos sofreu um processo gradativo de deterioração com a perda de sua condição de instituto de pesquisas e virou uma grande repartição pública. Sob a direção do Dr. Isaias Raw, que levou consigo vários professores universitários aposentados, mas em plena atividade científica, o Butantã refloresceu. Atualmente, é um centro não só de produção de vacinas e de soros, mas também de desenvolvimento de novas tecnologias para a produção em escala industrial e a preços inferiores aos praticados no mercado internacional.
O Brasil produz 75% das vacinas que são distribuídas pelo serviço público e é um dos países do mundo que mais distribui vacinas gratuitamente. Desses 75%, a metade é produzida pelo Instituto Butantã com eficiência e economia.

Produção de acordo com os padrões internacionais

DrauzioComo se desenvolveu o processo de produção de vacinas no Butantã?
I.Raw - No princípio, o processo de produção de vacinas foi empírico. Foi experimentando, errando e acertando que conseguimos uma produção totalmente automatizada, obedecendo a padrões que, às vezes, não são encontrados nas grandes companhias porque nossos laboratórios foram construídos há muito menos tempo.
Quando o governo resolveu que precisava fazer um esforço imunobiológico, nossa primeira atitude não foi reformar as fábricas. Ao assumir o Butantã, minha proposta era montar um centro para o desenvolvimento de novos processos de produção de vacinas e de soros.
Biotecnologia é uma palavra nem sempre bem empregada. Para mim, significa aprender a fazer uma coisa consistentemente e em grande volume. O Brasil demanda grande volume. Três milhões de crianças nascem por ano e, se cada uma tomar uma vacina que precisa ser aplicada em três doses, serão necessários perto de dez milhões de doses. Talvez, com exceção do México, nenhum país da América Latina tenha um programa que atenda essa demanda populacional. Por essa razão, sempre nos empenhamos em desenvolver uma tecnologia que nos permitiu remontar as fábricas e estamos trabalhando para criar vacinas que substituam com vantagem as que já existem.
A vacina da raiva, por exemplo, pode ser obtida injetando o vírus da doença no cérebro do camundongo de um dia. Depois, retira-se o cérebro do animal e faz-se uma polpa. Se tiver mielina nessa polpa, eventualmente, a pessoa que foi mordida por um cão raivoso poderá morrer por causa da vacina.

Drauzio O risco é pequeno, mas existe, não é?
I.Raw – Existe. Atualmente, porém, a vacina anti-rábica começa a ser produzida em cultura celular no Butantã. Não tem camundongo, não tem mielina. É uma vacina de nova geração e tem chance de sobreviver a longo prazo. No entanto, se não houver pesquisa, é impossível que alguma coisa tenha a chance de sobreviver. Felizmente, nós podemos contar com a colaboração praticamente de um único e importante parceiro, a Fundação Oswaldo Cruz, que complementa nosso trabalho fazendo a pesquisa básica, enquanto nós oferecemos o meio de campo criando tecnologia de verdade. São processos extremamente caros se comparados com uma pesquisa normal, mas, em compensação, progridem numa velocidade astronômica. Até algumas gerações atrás, eram necessárias três ou quatro administrações de vacinas contra a varíola para “ver se uma pegava”. Por que não pegava? Porque a vacina era posta dentro de um capilarzinho que era fechado no fogo e obviamente tal conduta comprometia a qualidade da vacina. Nem isso se sabia. Hoje, a varíola está erradicada do Brasil. Algo semelhante aconteceu com o soro. Enquanto o leite talha, se for contaminado na indústria, o soro obtido a partir do plasma do cavalo, se contaminado, não talha. Por isso, a importância em desenvolver novos processos de fabricação para garantir a qualidade de produção do Butantã.

Importância da pesquisa para o desenvolvimento de projetos

DrauzioIsso prova que instituições como o Butantã, que vieram se degradando com o decorrer dos anos, são recuperáveis. Essa recuperação consome muito dinheiro?
I.Raw – Eu diria que na realidade não consome. O Estado de São Paulo difere do resto do Brasil porque tem várias instituições desse tipo. O problema é que elas são muito diferentes das universidades. Primeiro, porque não têm alunos e é o aluno que estimula, faz perguntas, quer dedicar-se à pesquisa, cria desafios. Depois, porque as equipes se autoperpetuaram nos cargos. Quando havia uma vaga, era feito um concurso que resultava na aprovação de recém-formados egressos da universidade. Eles nada sabiam e viravam pesquisadores de uma hora para outra, sem escola nem orientação. Além disso, a relação desses institutos com a universidade era adversa. Um enorme portão separava a USP do Instituto Butantã. Quando eu estava na USP, olhava com maus olhos o Instituto e vice-versa: o pessoal do Instituto olhava enviezado para a turma da universidade. Enquanto se mantém esse cisto fechado, sem aluno, sem pós-graduação, a pesquisa morre. Aí, não há dinheiro que resolva. Tenho um filho que foi para o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos mantido pelo governo federal americano. Quando entrei lá, vi o antigo Butantã. Meu filho não agüentou viver naquele oásis de nada, tão diferente da efervescência própria das universidades americanas.
Nós abrimos o portão e recolonizamos o Butantã. Esse híbrido de instituto de pesquisas e de ensino é fundamental para o desenvolvimento da produção científica e tecnológica.

DrauzioConsumiu muito dinheiro esse incentivo à pesquisa?
I.Raw – Não. Foram empregadas dez pessoas que pediram auxílio à FAPESP para desenvolver seu trabalho. A instituição não deve ter verba de pesquisa. Se alguém quer fazer pesquisa, submete um projeto à apreciação da FAPESP e, se ele for aprovado, o candidato recebe dinheiro.
No Estado de São Paulo, a chance de conseguir ajuda é pelo menos dez vezes maior do que nos Estados Unidos, porque a concorrência é muito pequena aqui. Nos Estados Unidos, há ainda outro agravante. Lá não existe o pesquisador funcionário público. Não tem ninguém estável. Quando uma pessoa vai fazer pesquisa numa universidade, a verba recebida deve garantir o seu salário e um overhead que inclui até os honorários do diretor da escola. Na realidade, é o auxílio de pesquisa que mantém a instituição e não o contrário.
No Brasil, a pessoa tem salário, auxiliares, direito ao uso do espaço, da luz, da água, etc. Portanto, de 70% a 80% dos custos já estão pagos e, se a FAPESP aceitar o projeto, não vai dar mais do que 20% ou 30% do total. O resto já saiu do mesmo bolso: o Estado. A vantagem é que isso obriga o candidato a dar uma satisfação antecipada para a comunidade científica. Depois, quando o trabalho é publicado, mais uma vez será apreciado pela comunidade científica mundial.
Num passado não muito distante, os institutos de pesquisa tinham suas próprias revistas. Na Faculdade de Medicina, cada professor tinha um número de páginas reservadas para a publicação de seus trabalhos. Isso acabou. Agora é preciso concorrer a um espaço e passar pelo crivo de uma revista nacional ou estrangeira e, se o trabalho não for publicado, a verba pode ser revista.

DrauzioO senhor conhece, no Estado de São Paulo, um pesquisador que tenha a proposta de um trabalho importante e que não consiga recursos para realizá-lo?
I.Raw – Às vezes, o trabalho cai nas mãos de um referee que, por motivos pessoais, retarda o processo, mas no final todos que têm uma proposta aceitável acabam atendidos. A FAPESP financia a pesquisa e, como os institutos e laboratórios dentro das universidades públicas estão em situação precária, o pesquisador usa o dinheiro de acordo com suas necessidades: compra um micro ou reforma a mesa de trabalho, por exemplo. Essa é uma situação extraordinária que torna o Estado de São Paulo, comparado com outros lugares do Brasil e da América Latina, quase uma exceção. A tendência é esse funil ir estreitando com o tempo. No momento, porém, há muita gente boa que submete bons projetos. É obvio que uma porcentagem deles é de terceira categoria, mas isso faz parte do processo de crescimento.

Produção do sulfactante pulmonar

DrauzioO Butantã recebe grande parte das verbas de pesquisa através da FAPESP?
I.Raw – A pesquisa tecnológica, entre todas, é a mais cara. Para fazer, por exemplo, uma nova vacina de meningite B, é preciso montar um laboratório capaz de produzi-la de forma que possa ser injetada em gente, o que é praticamente construir uma fábrica de novo.
Por isso, talvez, nestes últimos 50 anos, a coisa que me tenha dado mais prazer pela velocidade e acidentalmente pelo modo que caminhou foi um projeto financiado pela FAPESP e patrocinado pela Sadia. A meta era produzir sulfactante pulmonar, um detergente que se forma normalmente no final da gravidez. Quando a criança dá o primeiro choro, se não houver sulfactante, o pulmão não expande, os alvéolos ficam colabados e a criança terá um problema grave, mais ou menos intenso dependendo da maturidade pulmonar do recém-nascido.
No Brasil, nascem por volta de 150.000 crianças por ano nessa situação, porque são prematuras por peso ou por nascimento antecipado. Se as crianças não forem salvas, os prejuízos psicológicos e econômicos para a família e para o país serão consideráveis.

DrauzioQuanto custa esse tratamento?
I.Raw – Cada criança demanda um ou dois tratamentos. O sulfactante custa R$500,00 por ampola, valor que multiplicado por 150.000 consome boa parte da verba do Ministério da Saúde.
Como esse produto é feito de pulmão de boi ou de porco, entramos em contato com a Sadia que nos forneceu os pulmões e colaborou com um pouco de dinheiro. No entanto, o projeto não podia ser desenvolvido apenas na mesa. Esse é um dos grandes problemas da universidade brasileira. Ela resolve o problema e espera que a indústria ponha em prática suas conclusões. Quando um industrial vai comprar uma tecnologia, porém, quer saber quais são os custos envolvidos: quanto de energia elétrica se gasta, quanto de água, onde se compra a matéria-prima e qual seu preço. Por isso, foi preciso montar um piloto que, para minha surpresa, não só funcionou depois de pequenas modificações, como vai ser possível produzir o sulfactante para as 150.000 crianças que nascem por ano num laboratório que ocupa um espaço físico muito pequeno.

DrauzioQuanto vai custar cada ampola?
I.Raw – Vamos vender a R$50,00 cada ampola. Eu era um professor universitário de Bioquímica. Não estava interessado em indústria nem em resolver problemas reais da sociedade. Produzir esse sulfactante provou que isso é possível e precisa ser feito.

DrauzioEssas diferenças chocantes nos preços levam a pensar que há alguma coisa errada nesse universo, o senhor não acha?
I.Raw - Nesse caso específico, posso dizer que a tecnologia que desenvolvemos é melhor do que a estabelecida no mercado. Nós criamos um método extremamente simples e eficiente para obter esse produto.
No caso dos preços dos medicamentos em geral, o problema não se resume aos impostos que não são baixos. Os custos incluem viagens de médicos a congressos, amostras grátis, publicidade, o salário dos propagandistas que visitam os consultórios, etc.

Vacina contra hepatite B

DrauzioA hepatite B, doença sexualmente transmissível, é o mais sério problema de saúde pública em países como a China, por exemplo. Sem tratamento, a doença provoca aumento na incidência de cirrose e tumores de fígado. Vacinar a população é uma medida importantíssima de saúde pública. Felizmente, o Butantã produz também essa vacina.
I.Raw – A vacina contra a hepatite B produzida no Butantã foi totalmente refeita e é semelhante às vacinas produzidas pelos países do Primeiro Mundo. Felizmente, não há uma campanha contra o uso de transgênicos na fabricação de vacinas porque nos valemos de recombinação genética. Um gene que codifica uma proteína existente na superfície da vacina da hepatite B, colocado dentro de um fermento da cerveja, passa a fazer uma cápsula idêntica à do vírus que provoca a doença. Por isso, é relativamente fácil purificá-lo, uma vez que não tem ácido nucléico e, portanto, não se reproduz. A tecnologia não é simples não só no que se refere à engenharia genética, mas porque a produção exige o emprego de centrífugas que atingem 200 mil vezes a força da gravidade e que foram desenvolvidas para a indústria de urânio. No hemisfério sul, somente a Austrália e o Butantã produzem essa vacina.
A hepatite B é uma doença muito importante por vários motivos. Primeiro, porque se o paciente não morre de hepatite, vai morrer provavelmente de câncer de fígado causando uma despesa familiar e pública muito grande. Quando o Instituto Butantã começou a produzir essa vacina, ela custava US$8,00 por dose. Em 2.000, nós a entregamos ao Ministério por R$1,00. O paradoxo nos valores é explicado pelo fato de que não competimos com o preço normal das companhias nem do grande atacado. Competimos com um fundo que existe na OPAS (Organização Pan-Americana de Saúde) previsto para os países pobres e que nos obriga a vender, no máximo, ao preço subsidiado para os países do Terceiro Mundo, meta que conseguimos ultrapassar, pois nosso preço é menor do que o exigido por esse programa.

Drauzio O senhor acredita que seja possível controlar a incidência da hepatite B?
I.Raw - Teoricamente, a hepatite B deve seguir o caminho da varíola. Se conseguirmos erradicar a doença e a África também o fizer, acabou-se a hepatite. Para tanto, temos que vacinar a população inteira e, no momento, não há no mundo quem fabrique a quantidade necessária de doses. Por isso, o Brasil começou pelas crianças e passou para os jovens de 15 anos, idade em que ingressam na vida sexual. No entanto, estudo realizado por um médico num asilo revelou que 25% dos internos tinham o vírus da hepatite. Ele examinou, a seguir, os funcionários e obteve o mesmo resultado. Ora, consta nos livros que só se pega hepatite por sangue ou por relação sexual, mas um trabalho feito por Luís Alberto Pereira da Silva, em Rondônia, demonstrou que crianças que não apresentavam a doença no primeiro ano de vida, aos cinco anos estavam infectadas.
Existe, então, um outro mecanismo de transmissão da hepatite, que desconhecemos qual seja e que funciona quando a densidade populacional é muito alta. Imagine uma criança que vá para a Febem. A possibilidade de ser contaminada pelo vírus da hepatite é imensa. O mesmo acontece com uma pessoa que vá para a cadeia ou seja presa numa delegacia. Criou-se para ela uma pena muito mais severa do que qualquer outra que o poder judiciário possa impor-lhe.

DrauzioDr. Ésper Kallas fez um trabalho na Casa de Detenção que resultou em sua tese de mestrado e encontrou 13,7% dos presos contaminados pelo vírus da AIDS, quase 40% infectados pelo vírus da hepatite C e 60%, pelo da hepatite B.
I.Raw – E não há o que fazer com essas pessoas. A única saída é a prevenção que pressupõe vacinar crianças e jovens que vão parar nesses lugares. Com os adultos, talvez já se tenha perdido a época oportuna para implementar essa medida.

Drauzio Como é feita normalmente a vacinação contra hepatite?
I.Raw – A vacina contra hepatite é aplicada em três doses: um mês depois de aplicada a primeira dose a pessoa toma a segunda dose e a terceira, no sexto mês. Nos adultos, essa última dose pode ser dada no quarto mês. Só depois de ter tomado as três doses, a pessoa estará completamente imunizada. Cerca de 10% delas, porém, não respondem à vacinação contra a hepatite B qualquer que seja o fabricante do produto. O pior é que esses 10% que não adquirem imunidade podem disseminar a doença e provocar uma epidemia.
Temos competência para fazer a vacina bem feita numa fábrica que nada fica a dever às do Primeiro Mundo. Conseguimos desenvolver não só as vacinas como somos capazes de montar fábricas para produzi-las. O Butantã atendeu a um pedido do Itamarati para montar de graça a fábrica de DPT (difteria, tétano e coqueluche) da Venezuela. No entanto, continua enorme a dificuldade em encontrar quem se interesse por testar novas vacinas. É um problema estressante que estamos enfrentando. Não adianta inventar um produto se não pudermos testá-lo convenientemente em pessoas porque em animais já provamos que dão certo.

As forças ocultas existem

Drauzio Por que o senhor acha que isso acontece?
I.Raw – Em parte porque deslocamos um mercado extremamente lucrativo. Considerando apenas a vacina de hepatite, a demanda brasileira é de 40 milhões de doses. Há anos, luto para montar uma fábrica de imunoglobulina e albumina. O Brasil gasta na importação desses produtos 200 milhões de dólares por ano. Para montar uma fábrica de Primeiro Mundo, gastaria 25 milhões e aproveitaríamos o plasma que colhemos e estamos jogando fora.

DrauzioQuer dizer que tiramos o sangue dos doentes, aproveitamos as hemáceas e outros componentes, mas jogamos fora a parte líquida pobre em células que é o plasma. Tecnologia para aproveitá-lo não seria o problema, seria?
I.Raw – No Butantã existe gente com experiência para tocar o projeto e o Brasil poderia produzir toda a imunoglobulina, toda a albumina e todo o fator VIII para tratamento de hemofílicos de que necessita e, eventualmente, exportá-los para outros países. No momento, através da engenharia genética, estamos trabalhando para substituir o fator VIII importado. Os japoneses estão tentando substituir a albumina. Entretanto a imunoglobulina, isto é, os anticorpos, que não tem uma molécula fixa, vai ser sempre retirada do plasma.

Drauzio Que forças são essas que impedem a execução de projetos como esse?
I.Raw – Não sei. Só sei que as forças ocultas existem. A tropa de choque é fácil identificar, mas há os que financiam essa gente e aí fica mais complicado. Em 2.000, o Butantã produziu quase 70 milhões de unidades de vacinas a um preço mínimo. Somos uma indústria que não é pequena, com funcionários mal remunerados que só pedem a oportunidade de poder trabalhar.

Vacina de meningite B e associação de vacinas

DrauzioO Butantã produz vacina contra meningite?
I.Raw – A vacina da meningite B distribuída no mundo é cubana e, por razões que ninguém podia prever, só funciona acima dos quatro anos de idade. Meningite B é um problema de saúde que atinge principalmente crianças de zero a dois anos, faixa etária em que a vacina não funciona. Temos uma vacina pronta para teste, mas não sabemos se a nossa vai funcionar ou vai ser igual à cubana. No entanto, tem sido extremamente difícil encontrar um serviço de saúde disposto a colaborar conosco testando essa vacina.

DrauzioE não se trata de uma vacina produzida de qualquer jeito. Ela é produzida de acordo com a mais moderna tecnologia, não é verdade?
I.Raw – A vacina só pode ser testada, se alguém inspecionar a fábrica e deve ser experimentada antes em animais para provar que não é tóxica nem lesiva. Com cobaias já deu certo, resta saber se dará com as crianças. Por isso, tem de ser testada em crianças de menos de dois anos de idade. Não existe outra forma.

Drauzio Qual a vantagem de associar a vacina contra hepatite ao BCG?
I.Raw – No Brasil, com menos de um mês de idade e eventualmente ainda na maternidade, a criança deve receber duas doses de vacina: uma de BCG contra a tuberculose e uma contra hepatite B. A vacina contra a hepatite, como a tríplice e outras mais, tem como adjuvante o hidróxido de alumínio, substância encontrada na pasta de dente, por exemplo, essencial em sua composição e responsável pela dor que a aplicação provoca. Além disso, em 10% das pessoas vacinadas não funciona. Então, levantamos a hipótese de que a solução seja dar um quinto da vacina de hepatite junto com BCG. Ainda na maternidade, a criança recebe as duas vacinas de uma só vez, numa única picada o que lhe poupa sofrimento e diminui os gastos porque as seringas, às vezes, custam mais caro do que a própria vacina.
Associar a vacina da hepatite B com a de tuberculose é uma solução brasileira. Quantos países do mundo usam o BCG? Poucos. Quantos países têm enfermeiras treinadas para aplicar injeções intradérmicas? Um milhão de doses de vacinas contra a hepatite fabricadas no Butantã já foram ministradas sem provocar nenhum efeito colateral, a não ser a dorzinha decorrente do hidróxido de alumínio. Nós queremos estender esses testes para descobrir se o método funciona também em adultos que nunca foram vacinados e aumentar o número de pessoas protegidas contra essas doenças.

Promessa de futuro promissor


Drauzio O senhor vê com otimismo o futuro do Butantã?
I.Raw – Certamente. Agora pretendemos empenhar nossos esforços nos produtos da área de saúde pública que o governo não tem verba para pagar a conta. É o caso do sulfactante pulmonar, dos medicamentos para os doentes renais e do interferon. É ilimitado o que ainda pode ser feito se olharmos pelo prisma da saúde publica.
Quando assumi o Butantã, havia uma verba para a produção de soro que era vendido para o Ministério e o dinheiro recolhido ao tesouro nacional. Hoje, o Instituto produz muito mais do que o estado subsidia e o dinheiro proveniente da venda de vacinas é dividido em duas partes: uma empregada na reforma e manutenção dos prédios antigos e outra, na produção de vacinas.
Temos uma eficácia administrativo-financeira bastante satisfatória. Cada dia que se aposenta um funcionário público, ele é substituído por outro que vai fazer parte do quadro de funcionários pagos por nós. Assim, evitamos que o governo estadual tenha sob seu encargo dois funcionários: o que fica em casa recebendo a aposentadoria e o novo contratado. Isso em nada prejudicou a qualidade de nossas vacinas.
Atingimos também uma eficácia tecnológica. Nossas vacinas são fiscalizadas pela OMS segundo as boas práticas de manufatura e pelo governo que fiscaliza cada lote. Raramente um lote do Butantã é rejeitado. Nossas vacinas são seguras, garantidas e baratas. O governo brasileiro não conseguiria mais oferecê-las com o dinheiro fixo de que o Ministério da Saúde dispõe. A população brasileira não pára de crescer o que faz do Butantã uma peça-chave nesse processo de atendimento público.

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