Príons: os responsáveis pela vaca louca
Uma impossibilidade aparente
O que é, o que é...? Algo que é muito pequeno, que causa infecção, mas não é fungo nem bactéria nem vírus? Algo capaz de organizar cópias de si mesmo, mas que não tem DNA nem RNA? Algo que não pode ser considerado vivo, mas que se espalha rapidamente pelas células que infecta? Por fim, algo que, apesar de ser infeccioso, também pode ser adquirido por hereditariedade?
Quantas contradições na proposta acima! Qualquer pessoa minimamente informada em Biologia dirá, com bastante razão, que ela não tem pé nem cabeça, impossível de se conciliar com o conhecimento atual. Por que essa proposta parece tão absurda? Vejamos os motivos.
Para que uma "partícula" seja infecciosa, ela precisaria ser dotada de vida, já que terá de se reproduzir para poder se espalhar pelas células que irá infectar. Por outro lado, partículas vivas, com capacidade de reprodução, por menores que sejam, têm algum tipo de ácido nucléico, DNA ou RNA, que transmite o "padrão" genético para as partículas-filhas. Outra contradição: doenças podem ser adquiridas pelo contato com um agente infeccioso, como é o caso da tuberculose ou da hepatite; ou podem depender de genes, sendo hereditárias, como o diabete e a hemofilia. Mas nunca são as duas coisas ao mesmo tempo!
Há, no entanto, uma categoria que satisfaz as contradições propostas acima: são os príons, estudados pelo cientista Stanley B. Prusiner, aparentemente responsáveis pela hoje famosa doença da vaca louca. Esses agentes, afirma ele, nada mais são que moléculas de proteínas, que causam doenças degenerativas do sistema nervoso central em animais e no homem, chamadas genericamente de encefalopatias espongiformes. Esse nome se deve ao fato de que são observadas no cérebro dos doentes regiões com verdadeiros "buracos", verdadeiras lacunas de tecido.
Algumas doenças causadas por príons
Em animais, a mais freqüente é chamada de scrapie, e ocorre em ovelhas e cabras, que perdem sua coordenação e acabam ficando incapazes de se manter em pé. Sentem intensa coceira, que faz com que acabem por arrancar sua lã ou seu pêlo. Muito ventilada hoje pelos meios de comunicação é também a doença da vaca louca, que fez com que os ingleses sacrificassem grande parte de seu rebanho bovino. A contaminação do gado ocorria através de ração que continha carne e ossos de ovelhas mortas. O governo britânico baniu em 1988, por causa disso, o uso de rações derivadas de animais. Há uma preocupação bastante grande, na Europa, de que o consumo humano de gado com a doença possa, de alguma forma, contaminar as pessoas.
As doenças causadas por príons na espécie humana são menos conhecidas. Uma delas, chamada Kuru, foi observada apenas em habitantes de uma tribo da Nova Guiné. Ela se caracteriza por uma perda da coordenação e mais tarde por demência, e é sempre fatal. Muito possivelmente, os doentes se contaminaram através de canibalismo ritual: os componentes da tribo costumavam honrar seus mortos comendo seus cérebros. Essa prática, no entanto, foi abolida e hoje a doença praticamente desapareceu. Outra moléstia, a doença de Creutzfeld-Jakob, ocorre no mundo todo; atinge apenas uma pessoa em um milhão, geralmente ao redor dos 60 anos, e acaba por causar demência. Sabe-se que de 10 a 15% dos casos são hereditários; uma certa porcentagem é devida à contaminação decorrente de tratamento médico, como transplantes de córnea, uso de instrumentos cirúrgicos contaminados ou injeção de hormônio de crescimento extraído de hipófises humanas. Há mais algumas doenças raras causadas por príons, que se enquadram nas características das encefalopatias espongiformes.
Príon: proteína, não ácido nucléico!
Já se sabia que tanto o scrapie quanto a doença de Creutzfeld-Jakob podiam ser transmitidos injetando-se extratos de cérebro doente em animais sadios. No início, acreditava-se que essas doenças fossem causadas por vírus de ação muito lenta. No entanto, a radiação ultravioleta, que destrói ácidos nucléicos, não inativava os extratos, que continuavam infecciosos. Isso sugeria uma coisa muito estranha: se o agente da infecção não continha ácido nucléico, não poderia ser um vírus. Prusiner e seus colaboradores descobriram que, ao contrário, as proteínas presentes no extrato eram responsáveis pela infecção; isso porque, ao usarem métodos de desnaturação, que modificam a conformação das proteínas, a capacidade infecciosa do extrato diminuía muito. A proteína do scrapie foi chamada de PrP, que vem de Prion Protein.
Os príons são codificados por genes
Os pesquisadores conseguiram descobrir, em células de mamíferos, o gene que codifica a PrP. Ficou assim estabelecido que este gene não é carregado pelo príon, mas reside nos cromossomos dos camundongos, das cobaias e dos seres humanos estudados! Em outras palavras, nossas células fabricam normalmente a proteína que chamamos de príon, sem que, no entanto, adoeçamos!
Verificou-se, na realidade, que a proteína existe sob duas formas, uma patogênica e a outra não. À forma normal, não-causadora de doença, chamou-se PrPc (PrP celular); a forma patogênica foi chamada de PrPSc (PrP Scrapie). Descobriu-se que, em algumas pessoas, o gene produtor de príons sofreu mutação; nessas pessoas, as encefalopatias espongiformes desenvolvem-se com maior facilidade. A doença, neste caso, comporta-se como hereditária e não como uma infecção adquirida.
Em resumo, pessoas ou animais com o gene normal produziriam o PrP celular, enquanto os indivíduos que possuíssem o gene mutado fabricariam o PrPSc. Faltaria entender, neste caso, como uma doença que parece ser hereditária pode também ser transmitida a outros indivíduos, exatamente como uma infecção.
Príons transmitem infecção
A diferença entre os dois tipos de príons (PrPC e PrPSc) é somente uma questão de configuração molecular. Enquanto o príon celular é uma proteína com uma estrutura dita alfa, em forma de hélice, o príon scrapie tem estrutura beta, em que a hélice se desdobra, formando uma fita esticada.
Um experimento muito elucidador permitiu que se intuíssem os mecanismos que levam os príons do tipo scrapie a se comportarem como agentes infecciosos. O PrP celular, em tubo de ensaio, pode ser convertido em PrP scrapie pela simples mistura de ambos os tipos de proteínas. Tudo se passa como se os príons scrapie, pela sua simples presença, pudessem "convencer" os príons normais a mudarem sua forma molecular, o que geraria um efeito cascata, levando mais e mais príons celulares a se transformarem em príons scrapie.
Esse experimento permite compreender o que se passa quando se injeta extrato de cérebro de animais doentes em animais sãos. O que se está introduzindo são príons do tipo scrapie, que "convencem" os príons celulares normais do receptor a mudar sua configuração molecular. Dessa forma, a doença se desenvolve no receptor, exatamente como se um agente infeccioso estivesse se reproduzindo no seu organismo.
Um dado muito importante reforça essa interpretação. Conseguiu-se por engenharia genética animais de laboratório sem o gene para produzir príons. Assim, esses animais nem sequer produzem o príon "normal" em suas células, o que parece não alterar em nada seu metabolismo (quem sabe o príon seja uma proteína "inútil" ao metabolismo celular?). Quando esses animais recebem extrato de animais doentes (ou seja, contendo príons scrapie), eles não desenvolvem a doença! Isso se explicaria pela ausência de príon celular; estaria faltando a matéria-prima necessária para que a doença se estabelecesse.
Como os príons causam as doenças?
Não se sabe ao certo como o PrP scrapie danifica as células. É muito possível que isso tenha a ver com os lisossomos celulares. Em culturas de neurônios, verificou-se que os PrPSc acumulam-se no interior dos lisossomos, não sendo hidrolisados normalmente pelas proteases. Possivelmente, quando nos tecidos do cérebro, os lisossomos acabam por arrebentar e matam as células; os príons liberados atacariam outras células vizinhas, repetindo-se assim o ciclo. Formariam-se "buracos" no cérebro, que ficaria com aspecto esponjoso (donde o termo encefalopatia espongiforme).
A contradição resolvida
Os príons, em última análise, são moléculas de proteínas normais (PrPc) produzidas nas células dos mamíferos, através de controle dos genes. Quando a molécula adquire uma configuração diferente (PrPSc), ela se torna patogênica. Essa configuração pode ocorrer devido à existência de um gene mutante no indivíduo, que eventualmente desenvolve a doença, neste caso hereditária. Extratos de cérebro de animais doentes, contendo PrPSc, injetados em animais sãos, causam a doença; acredita-se que os PrPSc induzem os príons normais a mudarem de configuração molecular, num efeito cascata, possibilitando o estabelecimento da doença.
(setembro de 1996)